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29 de Fevereiro de 2011

Eu tinha uma vida antes disso tudo. Pai, Mãe e um casal de irmãos. De vez em quando eu me pego pensando neles, e por um breve momento eles deixam de ser uma lembrança distante, fragmentos de memórias que meu cérebro, na maior parte do tempo, tenta ocultar. Foi difícil ter de largá-los. Diabos... Deixá-los para trás foi talvez a pior escolha que eu já tive que fazer, mas a coisa chegou a um ponto onde não havia mais volta. O exercito havia tomado conta das ruas e Goiânia se transformara numa cidade sitiada. Os soldados (grande parte deles usava mascaras de oxigênio e roupas anti-radioativas) empilhavam os corpos aos montes e depois queimavam, ali mesmo, em praça publica, para quem quisesse (ou se atrevesse a) ver. Foi só quando vi os corpos deles queimando em meio ao sol escaldante do verão, exalando aquele odor de carne putrefada sendo consumida pelas chamas, que me dei conta do quão solitário eu me sentiria dali em diante. A historia, muito provavelmente se lembrará de mim como o filho insensível, que foi capaz de estourar os miolos da própria família, inteira, só para salvar o próprio rabo, enquanto o mundo lá fora parecia enlouquecer. Mas se você está lendo esse relato, provavelmente já percebeu que a coisa não é bem assim. Eles já estavam mortos quando eu fiz o que tinha de fazer e eu não me arrependo disso. Aquelas coisas não eram mais minha família. Meu pai, minha mãe e meus dois irmãos (que Deus os tenha) morreram bem antes, e... Por Deus! Eu juro que cuidei deles até o ultimo minuto de vida de cada um deles.

Lembro como se fosse hoje. Era a decima primeira noite, após aquilo que os telejornais sensacionalistas haviam apelidado de “A infecção”. Um vírus altamente resistente e de incrível facilidade de propagação havia se espalhado ao redor do mundo, levando as pessoas a óbito e depois àquele estado que ninguém conseguia definir muito bem, pois as pessoas estavam mortas mas andavam por ai, feito gente viva, com seus corpos em decomposição reanimados por algo que ninguém conseguia ou saberia explicar.

Meu pai estava sentado em sua cadeira de balanço, usando sua velha camisa xadrez, calça jeans e fumando seu charuto, com a cabeça se espremendo para fora do boné surrado que cobria-lhe os poucos tufos acinzentados de cabelo. Apoiada sobre a perna direita, já corroída pela artrite, estava uma antiga espingarda de caça, winchester 22, de cano longo e cabo de madeira impecavelmente envernizado. Acariciava o cano da arma feito um dono ciumento dando um trato no pelo macio do seu gato. Não tirava os olhos da porta, um minuto sequer, mesmo sabendo que havíamos trancado ela por dentro com as grossas ripas de madeira, como ele mesmo nos ensinara e mandara fazer, para que assim evitássemos um ataque surpresa.

     Minha mãe e meus irmãos dormiam no quarto, enquanto nós dois mantínhamos vigília. Em geral, como eramos os dois homens mais velhos da casa, nos revesávamos na vigília, porém, naquela noite eu não estava com a minima vontade de ir para cama, e pelo visto ele também não. Por isso decidimos ficar até tarde, vendo o noticiário, esperando pelos plantões de urgência, já que eram nossa única fonte de informação. Naquela noite, em especial, houve apenas um plantão. O resto do tempo foi preenchido pela estática da TV, emitindo seus últimos ruídos desesperados antes que saísse de vez do ar. O que vimos foi apenas horror. Páris, Amsterdã, Bogotá, Nova Jersey, Rio de Janeiro... Nenhum lugar do mundo foi poupado. As pessoas entraram em desespero e em pouquíssimo tempo havia o caos nas ruas. Lojas foram depredadas, supermercados foram saqueados, pessoas... MUITAS pessoas se suicidaram. As que não o fizeram esperaram pela morte, pacientemente, a medida em que o mundo era tomado por aquelas criaturas. A reportar frisava que não demorou para que as informações começassem a pipocar na internet. O wikileaks, organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia e que ficou mundialmente conhecida após trazer a publico documentos confidenciais vazados do governo e imprensa, foi a responsável pela publicação do primeiro vídeo relacionado aos ataques e oficializado pelo governo norte americano. Foram poucas as informações divulgadas com relação ao vídeo, a não ser que tratava-se de uma missão de reconhecimento do exercito norte americano em território Russo (Segue abaixo o vídeo na integra).


- Quantos você acha que eles são? - Perguntou meu pai, desligando a TV, pontuando sua atitude com o silêncio matinal, quebrado só pelos grunhidos desconexos das coisas que caminhavam lá fora.
- Não sei. Muitos... Talvez, todos.
- Acho que você não entendeu. Eu perguntei quantos você acha que são lá fora.
- Aqui? Agora?
- Sim.
- Não sei. Dez. Doze... Talvez quinze, se formos otimistas.
- Eu contei dezesseis e meio, enquanto vocês pregavam as ripas. Dois estão se fingindo de mortos... Digo... De mortos de verdade. Os outros quatorze estão dispersos, procurando carne fresca. Vi um deles, cerca de meia hora atrás, carregando as próprias tripas enquanto se arrastava.
- O que fazemos agora? - Perguntei, imaginando a cena e tentando, ao mesmo tempo, expulsá-la de minha mente. Só conseguia pensar na segurança de minha família, principalmente nos meus dois irmãos e na minha mãe, dormindo no quarto.
- Não sei. Por enquanto, continuamos aguentando. Como anda a comida?
- Pouca. Acho que logo vou ter que sair pra procurar por mais.
- E os enlatados?
- Data de validade vencida. Por mim, tudo bem, mas as crianças não podem.
- Nem você pode. Nenhum de nós pode. Se precisarmos de um médico não haverá a quem recorrer.
- Tem razão.
- E a água?
- Acho que ainda temos o suficiente para pelo menos mais duas semanas, se soubermos racionar. - Respondi, pensando no que faríamos depois que as duas semanas finalmente passassem. Pensando em como estaríamos fodidos, quando isso acontecesse. - Pai... Não podemos ficar aqui para sempre...

Ele parou, fitando a porta, provavelmente mergulhado nos recantos obscuros de sua mente imaginativa. Odiava quando ele fazia aquilo, porque sabia que algo ruim sempre precedia aquele tipo de atitude. Após um longo e incomodo minuto de silencio, vi sua mão pressionar com força o cabo envernizado da winchester.

- Você viu aquilo?

Sim. Eu vi. A maçaneta da porta estava se mexendo...

Continua...

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