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24 de fevereiro de 2011

Já se passaram dois meses desde a ultima postagem. Não que isso faça diferença. O mais provável é que essas lembranças jamais sejam lidas, que essas idéias se percam no limbo virtual que hoje é a internet. Mais provável ainda é que permaneçam esquecidas em meio ao amontoado de corpos no qual Goiânia, e muito provavelmente o resto do mundo, se transformou. O garoto do e-mail, Luis, não entrou mais em contato, assim como os poucos contatos virtuais que me faziam companhia e para os quais eu ainda nutria um certo prazer em atualizar essas informações. Creio que por isso passei tanto tempo sem postar algo novo. A coisa toda era meio que um processo natural, uma vauvula de escape que me auxiliava a descarregar a tensão do dia a dia. Quando não tive mais com quem partilhar isso, acabei deixando de lado, como uma criança que se cansa de um brinquedo novo. Meio egocêntrico não é? Talvez por isso voltei a das as caras por aqui.


Acredito que o mais difícil não seja sobreviver. Mesmo porque os ser humano é, na teoria e na prática, extremamente adaptável. Sobrevivemos a era do gelo, aos tsunamis, maremotos, enchentes, desastres naturais infindáveis que levariam a cabo a vida de qualquer outra raça menos evoluída. Somos, em suma, criaturas “duras na queda”. Sobreviver faz parte do nosso instinto natural, desde o inicio dos tempos. Viver é que é diferente, principalmente agora que todos estão mortos. O ser humano, apesar de adaptável, não foi feito para viver só, e isso é um problema dos grandes. Conversar comigo mesmo e escrever nesse post as vezes ajuda, mas não é tudo. Sinto falta de alguém que me ajude a manter a sobriedade, alguém com quem possa dividir as dores, as angustias, os receios, as alegrias (que apesar de poucas, ainda existem). Alguém com quem eu possa simplesmente sentar, num fim de tarde, num barzinho qualquer, abrir uma cerveja bem gelada, comer um porção de batatinha frita e contar piadas, jogar truco (ou até mesmo conversa fiada) até a noite cair. O tipo de coisa que faria com que eu me sentisse mais humano, diferente dos filhos da puta que estão passeando lá fora enquanto eu escrevo essas lembranças. Queria ter outras preocupações, além de ter que verificar se as taboas estão bem presas nas janelas, ou se ainda há comida suficiente para o inverno na despensa, ou se as armas ainda disparam tão bem quanto no ultimo verão. Creio que se continuar assim, talvez seja só uma questão de tempo para que eu acabe enlouquecendo de vez. 



25 de Fevereiro de 2011.



As ruas estão, a cada dia que passa, mais inabitáveis. Ainda são poucos os que andam durante o dia, porém a marcha deles, apesar de lenta, ainda me assusta. Jamais me acostumei com seus corpos em decomposição caminhando reanimados. A morte não é engraçada, assim como a gente se acostuma a ver nos filmes b de terror. Mas não são as feridas expelindo aquele pus amarelado para fora delas que incomodam, nem o odor fétido de carne em decomposição e nem as fraturas expostas, mas sim os olhos... É nos olhos que reside o detalhe mais assustador. Apesar da condição deles, eles não estão mortos, e é nos olhos que se percebe isso. Mesmo revirados nas orbitas, estão vivos, como se perseguissem você, como se soubessem que você não é um deles e que seria uma potencial e deliciosa fonte de alimento caso fosse capturado. É como se com os olhos eles pudessem enxergar nossa alma Por isso sempre evito encará-los nos olhos, nas raras vezes em que me predisponho a caçá-los.



Durante a noite o fluxo deles é maior. Geralmente não permanecem por muito tempo aglomerados. Me parece que essas criaturas, diferente de nós humanos, possuem uma inclinação natural para o isolamento. Não possuem um sistema organizado de fala ou qualquer outro meio que seja, de comunicação, a não ser aqueles grunhidos desconexos, que ao meu ver, nada querem dizer. Raciocinam, é claro, porém num nível ínfimo de intelectualidade, o que, graças a Deus, acaba tornando minha convivência com eles um pouco mais fácil. Com base em algumas observações e anotações pessoais (além do material extra que consegui coletar pela internet – e que logo postarei por aqui, só a nível de informação - em sites do governo que agora, infelizmente estão fora do ar) pude deduzir que agem, em 99,9% dos casos, motivados por puro instinto agressivo. Quando não conseguem “carne viva”, em casos extremos, atacam a si mesmos, como pude presenciar e narrar anteriormente. O mais estranho, porém, é que a cada dia que passa o número deles diminui, de maneira natural e gradativa. No inicio pensei que estavam morrendo de fome, mas isso é impossível, levando-se em consideração que já estão mortos. Mesmo que fosse esse o caso, seus corpos deveriam estar largados aos montes nas ruas, apodrecendo no meio da droga desse sol escandante que anda fazendo ultimamente. Mas nem isso eu pude encontrar. Não há qualquer indicio que seja dos corpos deles largados pelas ruas. É como se simplesmente desaparecerem, como que por mágica. Talvez seja só impressão, mas desconfio que haja algo maior por trás disso tudo. Algum tipo de significado, não sei... A única coisa da qual eu tenho certeza, por enquanto, é que esses desgraçados metem muito medo. 



27 de Fevereiro de 2011.



Preciso dormir. Tenho passado a maior parte da noite acordado, vigiando as entradas da casa de luzes apagadas. Não confio muito na integridade das ripas, apesar de saber que sempre faço um bom trabalho quando lacro as portas e janelas. O negocio é que esses bichos são fortes... Não... Eu diria que eles são EXTREMAMENTE fortes. Na semana passada mesmo, enquanto eu reabastecia o estoque de mantimentos, ouvi um ruido estranho que vinha do beco que da acesso ao quintal dos fundos da casa. Quando olhei pela fresta, por debaixo da porta, vi um deles fuçando numa lata de lixo. Triturava um pedaço podre de carne de porco com a mesma facilidade de uma criança mastigando uma goma de mascar. A carne, dura feito pedra, se desmanchava no céu da boca da coisa morta sem oferecer qualquer tipo de resistência. Os braços, repletos de ferida que jamais cicatrizariam, formavam um confortável ponto de apoio em “V”, enquanto a coisa prendia a carne por entre os dentes podres e movimentada devagar o maxilar, sem se importar com o fato de que um ou dois dentes sempre pareciam se desprender da boca a cada mordida aplicada. De repente, em um movimento brusco de corpo, como se tivesse finalmente percebido minha presença, a coisa se virou e me encarou. Seus olhos cinzas, mas de maneira alguma mortos, me encararam por debaixo da fresta. Seu nariz fungou, como se farejasse algo, enquanto meu coração parecia querer saltar para fora do peito. Repeti mentalmente, que não deveria me precipitar, que tinha de manter a calma e me afastar da porta bem devagar para não acabar entregando minha posição. Esperei pela reação, imóvel, prendendo a respiração enquanto o morto se aproximava mais ainda. Seu bafo azedo me acertou em cheio quando ele abriu a boca, ainda me farejando, ainda me sentindo. Esperei por um impulso momentâneo de raiva, um corpo morto se jogando de encontro a porta, uma mão ferida vasculhando por baixo da fresta, um urro desesperado de fome, mas graças ao meu bom Deus isso não aconteceu. A coisa se levantou e eu aproveitei para também sumir do seu campo de visão. Passou-se um longo e estranho minuto de silêncio e quanto eu voltei a olhar, dessa vez pela fechadura, a criatura já havia ido embora, deixando para trás um rastro de carne de porco podre.

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