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        Acordei cedo. Bem mais do que eu pretendia. Tenho dormido pouco nos ultimos dias, mas não devido ao medo. É incrível como com o tempo você acaba se acostumando com a situação e passa a enxergar as coisas através de outra perspectiva. Foi o barulho que me fez acordar. Um deles derrubou uma lata de lixo em meio a sua busca infrutífera por alimento. O ruído da tampa de metal chocando-se contra o chão foi muito alto. Sou do tipo de cara que tem o sono pesado e que dificilmente acorda durante a noite, mas muita coisa mudou nas últimas semanas.

       Preparei o café da manhã com os olhos ainda latejando de sono. Ovos fritos, pão integral e suco de laranja. Não tenho o costume de beber, mas nos últimos dias aprendi que uma boa taça de vinho após a refeição matinal tem um sabor revigorante. Porém, procuro fazê-lo com moderação. Não posso me dar ao luxo de perder a sanidade, mesmo que isso seja apenas resultado do excesso de álcool na corrente sanguínea.


       Quando terminei o café recolhi toda a tralha, guardando os pedaços restantes de pão junto as sobras em cima da mesa e os copos descartáveis sujos de suco de laranja e vinho em um saco plástico. Não tinha porque fazê-lo. Ninguém reclamaria ou iria se opor a um pouco de bagunça premeditada. Mas eu não sou esse tipo de pessoa. Minha época de pré-adolescente irresponsável já passara há muito tempo. A necessidade de um pouco de limpeza me revigora, acentua um pouco mais minha humanidade sempre que eu estico o rosto pela janela e vejo o mundo inteiro se deteriorando do outro lado. Manter-me limpo e organizado faz com que eu me sinta melhor do que as coisas que vigiam as ruas e caminham lá fora.

08:17

        Tentei sintonizar alguma rádio. Buscar informações detalhadas sobre os últimos acontecimentos. Sobre a infecção e é claro, sobre outros sobreviventes, mas a única coisa que consegui ouvir foi o barulho irritante da estática. O ruído me incomoda, me deixa nervoso. Me lembra o barulho de um telefone velho, defeituoso. O tipo de aparelho pelo qual aprendi a nutrir um ódio quase mortal desde quando trabalhei em uma empresa de call Center como agente de atendimento; “Suporte técnico, Edilton, bom dia, em que posso ajuda-lo?”. A fraseologia ainda me da calafrios.

09:10

        Vasculhei a casa inteira em busca de algo que pudesse me servir de proteção. Fiquei surpreso ao encontrar uma arma em uma cômoda no quarto do casal, ao lado da cama. Calibre 38. Quatro balas no tambor. Duas tinham sido disparadas, talvez recentemente. O cheiro de pólvora queimada no cano ainda era muito forte. 

      Examinei a arma com cuidado. Era grande, mais robusta do que um 38 normal. e quase que inteiramente personalizada. O cabo era recoberto por duas armações laterais de madeira impecavelmente envernizadas, contracenando perfeitamente com o metal brilhante e vivo que revestia o cano e o tambor. Na lateral direita do cabo, próximo ao gatilho, duas pequenas iniciais haviam sido marcadas, cuidadosamente esculpidas por mãos habilidosas sobre a madeira envernizada; J.R.

      Examinei a outra gaveta, procurando por um documento de identidade ou qualquer outra coisa que me ajudasse a compreender o significado das iniciais gravadas na arma, mas não encontrei mais nada, além de um pedaço amassado de papel com uma receita de bolo escrita nele, um documento de isenção de matricula para o vestibular e um livro velho, de paginas amarelas e aspecto desagradável ("Cujo", de Stephen King. Coincidentemente, meu autor predileto).

       Na gaveta seguinte encontrei um porta-retratos quebrado. O vidro rachado em diversos pontos deixava o rosto das pessoas do outro lado disforme. Na foto, um garotinho de camisa listrada e cabelos loiros sorria, exibindo os dentinhos brancos com aquela incrível desenvoltura que só as crianças que ainda não tem maturidade suficiente para entender as complexas equações da vida tem. Abraçava o pai, sentado em um banquinho ao seu lado, de oculos, cabelos castanhos curtos e lisos, com ligeiros filetes brancos despontando nos cantos. Segurava uma garotinha nos braços. Ela tinha os olhos grandes e redondos. Tão verdes quanto o trecho do gramado bem cuidado em que eles se encontravam parados. Ao lado dos três, orgulhosamente parada, a que provavelmente deveria ser a mãe da garotinha. Apenas um pouco mais baixa do que o pai, tinha os cabelos crespos de uma tonalidade de vermelho natural encantador, amarrado em um coque atrás da cabeça. Pareciam felizes. Por um momento me perguntei onde estariam agora. Fariam essas pessoas parte das estatísticas? Teriam elas sucumbindo aos horrores “daqueles que voltaram?”. Ou, assim como eu, permaneciam escondidos, apenas esperando o momento certo... Mas “momento certo para o quê?”. Não havia mais esperança. O mundo inteiro fora sucumbido diante do acontecimento que futuramente veio a ficar conhecido como “A praga”. A praga dizimou 99,9% da população mundial. Não acredito, em hipótese alguma, ser o único sobrevivente, mas a porcentagem destacada pelos jornais e outros meios de comunicação antes que a coisa simplesmente ruísse é inacreditável. Precisava de respostas, mas era obvio que ali, parado, observando com curiosa atenção uma foto antiga num porta-retratos quebrado eu jamais encontraria.


       Tirei a foto do porta-retratos com cuidado, temendo que ao menor deslize fizesse com que o papel se rasgasse, e guardei-a no bolso de trás do jeans surrado que eu usava. Em seguida examinei com um pouco mais de cuidado a arma. Abri o tanque e tirei as quatro ultimas balas que restavam. Guardei-as no bolso da frente, sentindo o frio desconfortável do metal tocar em minha pele sobre o jeans. Girei o tambor, certificando-me de que não havia mais nenhuma bala ali.  Guardei a arma na cintura, escondendo-a parcialmente com a camisa, fechei a gaveta da cômoda e sai. O dia estava apenas começando e eu tinha muita coisa ainda a fazer

10:37

        O sol estava excepcionalmente brilhante. Grandes ondas de calor atravessavam os telhados das casas e se não fosse pelo silencio anormal e o estado de total abandono das ruas, poderia até ser um dia agradável. Não se ouvia uma única alma viva sequer. Os cães haviam debandado, logo no inicio do processo, antes mesmo que se registrassem as primeiras mortes. Parece que a capacidade deles de farejar o perigo no ar é bem mais aguçada do que a nossa. Os pássaros também. Migraram um verão antes do Cataclisma se abater sobre nós. Criaturas espertas...

11:30

        O carro era um celta preto, modelo 2007. Encontrei-o com a porta amassada e o vidro traseiro estraçalhado. Poderia procurar por um veiculo melhor nas casas que permaneciam com as portas abertas, convidativas, mas achei melhor não fazer isso. Primeiro porque a chave daquele já estava na ignição. Segundo porque vasculhar locais desconhecidos, mesmo durante o dia, ainda é perigoso. Alguns deles se escondem nesses lugares, esperando pela noite por algum visitante desatento. A tática nunca funcionava, mas aquelas criaturas são persistentes, e, ao contrario do que muitos pensavam, também não são burras. Ao menos, não completamente. Tem noções básicas e instintivas de sobrevivência suficientemente fortes para mantê-los “vivos” (se é que posso usar tal termo). E além do mais, uma porta amassada e um vidro quebrado não faria tanta diferença. Não pretendo ser surpreendido em plena luz do dia, e jamais cogitei a possibilidade de sair durante a noite. Seria um erro, provavelmente fatal.


       Sentei no banco do motorista e dei a partida. Na primeira tentativa o motor engasgou e não pegou. Não me surpreendi. O mostrador que exibia a quantidade de gasolina do carro estava quase no zero, na zona vermelha, mas pelos meus cálculos ainda havia combustível suficiente para chegar ao próximo posto. Girei mais uma vez a chave na ignição e novamente o motor engasgou e ameaçou não pegar. Entretanto, apenas alguns segundos depois, o ruído que inicialmente fora fraco, como o arquejo de um velho moribundo em seus últimos momentos de vida, fortaleceu-se. Afundei o pé no pedal da embreagem e tirando o carro do ponto morto, acelerei. Um rugido alto e gutural saiu do motor, junto a uma torrente de fumaça negra que escapuliu do escapamento. Fechei a porta, coloquei o cinto, tendo em mente que velhos hábitos nunca morrem, engatei a primeira marcha e sai devagar, com o sol refletindo sobre o teto negro e sujo de poeira do carro.


        A visão ao meu redor era desoladora. Casas e prédios inteiros estavam destruídos, alguns depredados pelos vândalos na época em que “a coisa” havia se espalhado, gerando pânico. Dirigi devagar, passando por uma rua apertada que dava, por fim, em uma grande avenida. A Avenida Anhanguera, por onde passava a antiga linha de ônibus que atravessava a cidade, de uma ponta a outra. Dos coletivos nada mais havia sobrado, há não ser pó. Cinzas grudadas pelo calor das chamas aos contornos metálicos dos ônibus queimados. Uma grande fileira de cadáveres metálicos. Alguns corpos ainda estavam dentro dos ônibus, carbonizados, misturando-se ao ferro derretido, sentados sobre as poltronas queimadas, como se esperassem pacientemente pela morte iminente. Havia crianças também. Uma delas estava deitava sobre os braços da mãe. Seus contornos ficaram quase irreconhecíveis. O maxilar proeminente caia por sobre o queixo, exibindo uma fileira de pequenos dentes bem cuidados. Era o único detalhe que não havia sucumbido por completo ao calor das chamas. Em sua cabeça uma pequena e delicada tiara de plástico derretido separava os tufos de cabelos queimados. Desviei o olhar e segui em frente, com a imagem dos ônibus queimados e da garotinha com a tiara sobre a cabeça gravadas para sempre em minha mente.


Ônibus depredado próximo a Av. Anhanguera

        Quando cheguei no posto de gasolina já passava das onze horas. O clima estava seco e ensolarado, não chovia há dias. Desliguei o carro, retirei o cinto de segurança e sai. Estacionara o veiculo ao lado da bomba de gasolina, planejando não demorar muito. Meus olhos ardiam pela falta de sono e o clima seco não ajudava.

     Assim como em todos os outros lugares pelos quais eu já passara, o posto estava completamente deserto. Em um canto, uma bomba defeituosa deixava pingar álcool no chão em ralas gotas, formando pequenas, mas expressivas manchas sobre o relevo empoeirado do solo. A vitrine da loja de conveniências estava quebrada, partida ao meio pela força de um cadeira arremessada contra ela. As luzes no interior da loja estavam apagadas, o gerador provavelmente já consumira toda a energia armazenada e exalara seus últimos suspiros. Um refugio ideal, mas não para mim.

        Apressei-me e comecei a encher o tanque do carro, em uma das poucas bombas que ainda funcionava. Enquanto o tanque enchia, afastei-me alguns metros, deixando que uma réstia de sol que ultrapassava as telhas quebradas do posto me encontrasse. Tirei do bolso um masso surrado de cigarros e levei um deles até a boca. Do outro bolso tirei um isqueiro, já quase sem álcool e pressionei com força o botão metálico, junto a ponta do cigarro. Uma tênue faísca amarelada surgiu e sumiu da mesma maneira, misteriosa, antes mesmo que o cigarro absorvesse seu calor. Fiz outra tentativa, novamente sem sucesso. Ergui o isqueiro, irritado, contra o sol, apenas para comprovar o que eu já imaginara; O Álcool estava mesmo quase no fim. Sacudi o isqueiro, sentindo seus contornos metálicos aderirem a palma da minha mão soada como um inseto preso numa teia de aranha. Voltei a pressionar o botão, de leve, e dessa vez uma modesta, mas suficiente, chama irrompeu da ponta do isqueiro, enquanto eu permanecia pressionando-o, agora com um pouco mais de vontade. Levei-o rapidamente até a boca e apenas alguns segundos antes que a chama oscilasse e se apagasse de vez, consegui acender o cigarro. A sensação não foi, de modo alguma, prazerosa. O cheiro do cigarro era ruim e o teor elevado de nicotina deixava uma sensação de nauseante na boca. Antes mesmo de partir para a terceira tragada me senti como se estivesse mastigando um pedaço de papel queimado. A sensação de sujeira, especialmente na ponta da língua, era extremamente desagradável. Entretanto, eu precisava de algo para me apegar. Um refugio físico, uma distração fútil e sem sentido, mas ainda assim uma distração.

        Inspirei a fumaça em duas ultimas e grandes tragadas, joguei a quimba do cigarro no chão, em um ponto bem distante das bombas de gasolina e voltei para certificar-me de que o tanque estava cheio. Desliguei a bomba e guardei a mangueira no suporte, ao lado do banco do frentista. O sol já começava a despontar no céu, lançando ondas dançantes de calor sobre o asfalto quente, quando pensei ouvir algo. Um ruido semelhante ao de passos, de pés sendo penosamente arrastados pelo chão e que vinha do interior escuro da loja de conveniências.

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